Cartas em cartaz: Prezado Presidente

Espero que este bilhete o encontre bem e com saúde.

Saiba que durante oito anos de governo, o povo brasileiro escreveu e enviou uma vasta correspondência ao Presidente Fernando Henrique Cardoso. Cartas endereçadas ao Palácio do Planalto trouxeram as mais variadas mensagens da população, e ao que parece, esse fenômeno ocorre também pelo mundo.

Enviados de todos os cantos do país, esses documentos são um tesouro do acervo por trazerem espontaneamente as palavras de quem se autorizou a comunicar suas opiniões, desejos, malquerer e gratidão ao chefe do Executivo. Uma parte traz o registro da vida de pessoas que narraram detalhadamente suas histórias, o que é no mínimo curioso, dada a ausência de proximidade com o destinatário.

Convidamos você a explorar esse tesouro, mostrado discretamente pelo respeito que devemos aos remetentes cuja intenção nunca foi ver publicizada a sua escrita. Venha espiar um pouco, esses textos para conhecer sua riqueza, diversidade e as motivações que condicionaram essa escrita que revela um pouco da alma das ruas.

Por que escrever?

A troca de cartas foi por muito tempo uma forma de abolir distâncias. Um espaço destinado ao remetente e ao destinatário para trocar confidências, enviar notícias, pedir, informar, e sobretudo, manter uma relação.
A lógica desse pacto pede que toda carta enviada seja respondida. A forma de tratamento, o tamanho das mensagens e a frequência do vai e vem são cláusulas estabelecidas pelos que escrevem. A carta diz respeito ao privado e interessa somente aos olhos dos que se correspondem.
Longe de cumprir os elementos desse pacto, as cartas escritas pelo povo brasileiro ao presidente FHC carregam o intuito de comunicar algo, mas a relação sustentada é unilateral, uma vez que o destinatário desconhece o remetente.

 

O anonimato autoriza a ser irreverente?

“Em 1992, foi enviado por intermédio de um professor o plano real que eu criei e pedi um professor para levar a ideia magnifica do plano para Brasília ou seja o congresso nacional. O plano real contribui para que o senhor fosse eleito, ou seja o plano que o elegeu presidente do Brasil. Gostaria de receber uma contribuição pelo real.”

Alienígenas: o grupo de estudos sobre extraterrestres descreve a visita iminente e se declara parte desse gênero.


“Agora será impossível negar nossa presença. Estaremos nos céus por toda parte. Toda verdade será mostrada. Aqueles que negaram nossa presença, irão se convencer. Aqueles que nunca acreditaram em nós, vão nos ver. Aqueles que esconderam informações sobre nós, não poderão mais escondê-las. Aqueles que não admitiram nossa existência, verão que existimos e somos reais. Sempre estivemos convosco, humanidade. Somos seus Irmãos. (…) Exmo. Sr. Presidente, sabemos quão difícil é acreditar nas nossas palavras. Mas o tempo provará a realidade de tudo que dizemos. […] Quando estivermos nos céus do Brasil, esclareça a população, pois isso será fundamental para a nossa descida. Não usem suas forças militares contra nós. Viemos em paz. Somos seus Irmãos. A Paz voltará a reinar nesse quadrante. Eis alguns pontos importantes: Os extraterrestres são parecidos conosco. São homens e mulheres extraterrestres. Nós somos descendentes deles. Esclareça a população sobre isso, pois um dos maiores medos dos seres humanos é quanto a aparência dos extraterrestres. Os extraterrestres não vieram dominar a humanidade. Eles vieram em Paz e apenas desejam a integração da humanidade à comunidade universal, quando iremos conviver pacificamente lado a lado.”

O que escrever?

Quem escreve não conhece o Presidente da República, mas no imaginário popular trata-se de alguém com o poder de dar um jeito em quase tudo. Pode ser também uma espécie de pai a quem se conta problemas e se faz pedidos. De qualquer forma, escrever ao chefe da Nação é um ato político.
O conjunto de cartas expostas foi dividido nas três categorias mais constantes na correspondência: as de apoio e elogio, que vão da admiração à bajulação. As de crítica e sugestão, que desaprovam, condenam, censuram, mas podem oferecer projetos para ajudar a pensar o país. As de apelo e pedido, que solicitam, pleiteiam, reivindicam, requisitam e requerem justiça, dádivas, cargos e muito mais.

A ideia de separação do Brasil é mais antiga do que a gente pensa…


“O Nordeste são as algemas que não deixam essa nação super-crescer, que atrasam o Brasil e estraga a imagem de nosso país no exterior, pois puxa os índices sociais para mais perto da Índia…”

Comunicar um desejo íntimo a alguém com quem se identifica ajuda a conquistar um sonho?


“Ao meu amigo FHC: O futuro está em nossas mãos. Depende exclusivamente de nós. Quem sabe, não serei a 1ª presidente do Brasil (o senhor não imaginava que o seria?). Basta acreditar no meu sonho e ter um alto ideal. Lutar, ter coragem, determinação e muita perseverança. Ingredientes básicos para o sucesso.”

Muitos dos remetentes aprovam e expõem sua admiração pela trajetória política do Presidente e de seu percurso como professor e intelectual. Nesses fragmentos as pessoas falam com a intimidade usada entre amigos.


“[…] 1º Quero lhe dizer que estou muito feliz pelo senhor ter sido eleito. Meu primeiro voto para presidente foi justamente para o senhor. Acredito em mim, acredito no Brasil, acredito no senhor, Fernando Henrique! Sei que não irá decepcionar quase 200 milhões de brasileiros.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Ao escrever para o chefe da Nação o desejo é melhorar o país. Nesse segmento há tanto demandas concretas quanto a presunção de cidadãos pouco comedidos e interessados em oportunidades. E o tom vai da argumentação respeitosa ao destempero verbal.


“Cumprimentando-o honrado, rogo-lhe vênia especial, para dizer, que após estudos há possibilidades de elevar o nos PIB para perto de 1 trilhão. (…) Por isso, sendo-lhe interessante conhecer coloco-me à inteira disposição quando na oportunidade gostaria de contar com a presença de ACM e o meu governador Mario Covas.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As cartas de pedido predominam, apesar de ainda não termos estatísticas sobre o conjunto. O Presidente é visto como onipotente, uma espécie de super-herói, capaz de resolver problemas de natureza muito diversa.


“Aproveito ainda para dizer que ainda moro em casa alugada e gostaria de solicitar de V.S.º o financiamento de um terreno e casa própria pela Caixa Econômica Federal. Até agora não tive orientação de como fazer este financiamento, solicito maiores informações de V.S.ª ou de algum membro da Caixa.”

 

 

 

 

 

 

Essa carta, de 15 de novembro de 1999, dia do aniversário da República, é a única que terá identificado o seu remetente, por trazer um pedido para a comunidade. Foi escrita por Antônio Gonçalves da Silva, poeta popular, conhecido como Patativa do Assaré (1909 – 2002).

 

 

“Excelentíssimo doutor,
Da República o Presidente,
Confiando no Senhor
É que peço humildemente

 

Pelo amor de Dona Rutti,
Joia do seu coração
Doutor Fernando, me escute,
Esta solicitação

 

Com esperança e com fé
Lhe peço e fico obrigado
Que o Banco, aqui no Assaré
Não seja privatizado.”

A chegada no Palácio do Planalto

Danielle Ardaillon assessora de Fernando Henrique Cardoso há mais de quarenta anos, dirigiu, no segundo mandato presidencial, a Secretaria de Documentação Histórica, órgão do Gabinete da Presidência, onde organizou a recepção das cartas e as respostas. Ela conta um pouco como foi pensada essa tarefa de lidar com as expectativas e sentimentos das pessoas, sem dúvida, uma grande responsabilidade. Veja mais sobre Danielle

Inicialmente as respostas às cartas seguiam por telegrama, mas percebeu-se que esses documentos representavam o chefe de Estado. Passou-se a registrar a entrada de cada uma e tentar resolver alguns dos problemas colocados, encaminhando-as aos órgãos competentes. A resposta deveria ser bem cuidada, em papel timbrado, com escrita clara e elegante, conforme o protocolo que se espera de uma resposta oficial.

 

 

 

As cartas no arquivo permanente

As cartas têm um potencial informativo notável e são a cereja dos acervos pessoais. Foram a forma de comunicação por excelência do passado e continuam sendo, veiculadas agora por meio de transmissão eletrônica, por exemplo o e-mail.
Ana Maria Camargo, consultora do Acervo da Fundação Fernando Henrique Cardoso, discorre nos vídeos a seguir sobre a importância do conjunto e explica o método de classificação usado neste Acervo para caracterizar cada documento. Trata-se de um problema enfrentado pela totalidade dos arquivos brasileiros e de fora, e que carece de discussão, já que a correspondência é tratada como um coletivo indeterminado, uma vala comum que nada revela da sua riqueza.

 

 

 

Sobre Danielle Ardaillon

Danielle Ardaillon foi assessora de Fernando Henrique Cardoso, responsável pelo acervo acumulado na presidência da República e conselheira para a concepção dessa Fundação, criada para conservá-lo e torná-lo público.

A parceria entre FHC e Danielle vem dos anos 1980 no Cebrap, escritório que reuniu professores expulsos da Universidade de São Paulo pelo golpe de 1964, onde cuidava de seus documentos e dos da instituição. Quando o sociólogo abraçou a carreira política, ela seguiu cuidando das tarefas ligadas à Sociedade Internacional de Sociologia, a ISA, presidida por Cardoso. Esteve por isso sempre a par de sua vida intelectual e, também, era próxima da família pois cursou a pós-graduação em Antropologia e obteve os títulos de mestre e doutora sob a orientação de Ruth Cardoso.

Danielle foi convidada a transcrever as gravações de FH sobre o cotidiano da política que deram origem aos “Diários da Presidência”, época em que precisou resistir ao assédio de políticos, jornalistas e curiosos. Para conhecer como eram tratados os acervos presidenciais visitou várias instituições estadunidenses (libraries de John Fitzgerald Kennedy, James Carter, Ronald Reagan). Na Europa conheceu as soluções adotadas para os acervos de Mário Soares e De Gaulle. Estudou os sistemas de financiamento, os modelos institucionais e as legislações desses países quanto aos acervos.

No segundo mandato de FHC foi para Brasília com a missão de dirigir a Secretaria de Documentação Histórica, órgão do Gabinete da Presidência, que acumula os documentos que entram e tramitam por lá. Essa massa documental reflete o trabalho diário do presidente e constitui o seu acervo, considerado privado, mas de interesse público pela legislação brasileira e por isso destinado à guarda permanente. É nesse conjunto que se encontram as cartas, depoimentos espontâneos e não oficiais da vida do país.

 

Ficha técnica

Concepção:

Grifo Projetos Históricos e Fundação FHC

Curadoria/desenvolvimento:

Beatriz Santos, Camilla Campoi, Jéssica Almeida, Silvana Goulart 

Redação:

Camilla Campoi, Silvana Goulart

Edição de texto:

Silvana Goulart

Narração:

Benedito Sverberi, Rita Daher

Identidade visual:

Dmitry Bayakhchev, Mateus Petratti, Rodolfo Quina – Sintrópika

Agradecimentos:

Ana Maria Camargo, Benedito Sverberi, Danielle Ardaillon, Mais Diferenças, Rita Daher, Sebastiana Cordeiro, Sergio Fausto, Vinicius Doti.