Eu te dedico: para Ruth e Fernando Henrique Cardoso

Livros conectam pessoas e dedicatórias são provas de relações entre elas. Como forma livre e pessoal de expressão elas revelam um pouco da natureza desses vínculos. Elas lembram um momento, uma intenção e tecnicamente transformam os livros em exemplares únicos.

A exposição exibe dedicatórias em livros da biblioteca de Ruth e Fernando Henrique Cardoso. “Eu te dedico” aposta na possibilidade de revelar um pouco da vida desses ‘loucos por livros’, por meio das obras que colecionaram e das relações que mantiveram com seus autores. As dedicatórias deixam entrever circuitos sociais, impressões causadas, parcerias construídas e em torno de que ideais.

O interesse público dessas dedicatórias oferecidas no privado, ocorre pela importância dos autores que as manuscrevem. São amigos e colegas de academia e profissão, intelectuais, correligionários políticos, ficcionistas. E são também nossos contemporâneos, cujas obras foram e continuarão a ser estudadas e discutidas por trazerem leituras do Brasil e do mundo. Um painel de autores que apresentam uma versão escrita do século XX.

Cada bloco da exposição conta uma história, mas o fio condutor é, sem dúvida, as relações afetivas entre os que ofertaram e os que receberam as dedicatórias.

A primeira parte, “De Ruth para Fernando Henrique”, apresenta três dedicatórias de livros oferecidos por ela, ainda nos anos 1950. Os autores estão longe do círculo do casal que se formava, mas eles falam dos gostos e interesses que iriam pautar suas vidas e permitem conclusões interessantes.

A segunda seção trata de “relações compartilhadas por Ruth e Fernando Henrique” com seus pares – professores, sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, filósofos, historiadores, advogados, jornalistas. Esses autores agrupados formam um retrato das ciências humanas entre nós e cobrem 40 anos de relações entre uma confraria muito nossa conhecida.

O terceiro bloco, “Deixando entrever relações de Estado”, reúne dedicatórias de políticos e chefes de estado, majoritariamente para FHC, explicitando proximidade e admiração. São lideranças marcantes do cenário norte e sul-americano, europeu, africano e formam um grupo que se notabilizou pelo apreço à democracia e aos direitos humanos.

A arte de narrar marca a quarta seção, “Dois amantes da literatura”, e esse amor fez Ruth e Fernando Henrique se aproximarem de autores que admiravam. Os livros dedicados, de crônicas e memórias, também falam de um mundo de nosso interesse pois neles se conta, comenta e traduz a realidade e pessoas do nosso tempo.

A última parte, “Marca de um legado”, é um conjunto unitário. É a dedicatória definitiva, quando FHC fecha um ciclo e a faz imprimir no livro que é o balanço de sua vida política.

O tema das dedicatórias já foi abordado em exposição presencial, realizada na sede da Fundação, em 2014, com reproduções e originais das obras e suas marcas. A historiadora Andrea Daher, professora do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, produziu com o mesmo material, em 2018, o ensaio Na ordem dos livros: dentro da Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso, onde discute os sentidos que atravessam a biblioteca por dentro, relacionando-a com o que está fora dela.

O começo de uma jornada

De Ruth para Fernando Henrique

Ruth e Fernando Henrique se conheceram no exame vestibular para o curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. Sentados lado-a-lado, no dia do exame oral, ele lhe disse que não tinha estudado e ela lhe emprestou seus fichamentos. Difícil concluir qual dos dois foi mais esperto. Colegas de turma, tiveram a vivência universitária entre aulas e seminários no prédio da rua Maria Antônia, entre compras na Livraria Jaraguá, pesquisas na Biblioteca Mário de Andrade, passeios no Clube dos Artistas e Amigos da Arte, diversão no Teatro Brasileiro de Cultura. O centro de São Paulo era então, o espaço nobre da cidade.

As dedicatórias que se seguem significam mais do que o ato de ofertar um livro. São expressões de uma moça que, ao passar ao largo de mensagens melosas, consideradas tolas por aquela geração intelectualizada, revelam o tom do início de uma vida comum que irá se desenrolar em um mundo definitivamente moderno, vinculado à ciência e guiado pela literatura de vanguarda.

O começo de uma jornada

Para o Fernando Henrique da Ruth. 18-6-49.

Apollinaire foi o autor escolhido por Ruth para presentear Fernando Henrique em seu aniversário de dezoito anos, no primeiro ano da faculdade. Na época fizeram um curso no Museu de Arte de São Paulo, ministrado por seu diretor, Pietro Maria Bardi, para serem monitores do museu. FHC em depoimento de memória recorda que o Masp foi um campo fértil para os jovens, que das artes visuais pulavam para a literatura, a história e a filosofia, em sinapses vertiginosas. Não à toa, Ruth escolhe um livro de versos sem rima, alguns formando esculturas gráficas nas páginas, de um autor que inspirou as vanguardas de todas as artes na Paris do início do século XX.

Calligrammes de Guillaume Apollinaire.
25. ed. 1948.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

O começo de uma jornada

Pro Fernando Henrique da Ruth, dezembro, 1950.

Marx foi o escolhido como presente para Fernando Henrique em dezembro de 1950 (teria sido o ‘Natal do Capital’?), um primeiro tijolo teórico e filosófico para a biblioteca de um sociólogo. A obra seria marcante para o casal que trabalhou para dissecá-la junto a companheiros de geração, o que estreitou amizades e fundou um grupo que iria dialogar entre si por décadas, por meio de sua produção intelectual.

El capital: crítica de la economía política de Karl Marx.
v. 1. 1946.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

O começo de uma jornada

Ao Fernando Henrique, no seu segundo dia de árduo trabalho, Ruth 30/10/1951.

No terceiro ano de faculdade, o vencedor do prêmio Nobel de literatura, André Gide foi o autor escolhido por Ruth para presentear Fernando Henrique. A obra, “Os subterrâneos do Vaticano”, discute as inquietações da época quanto a religião e a liberdade de escolha e suas consequências, reverberando Nietzsche e a cartilha surrealista. A dedicatória faz menção a um certo dia de trabalho que não conseguimos precisar e o “árduo” carrega um grão de ironia.

Les caves du Vatican.
1951.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Para Ruth e Fernando

Os livros e suas dedicatórias são prova das relações sustentadas, falam tanto de quem recebe quanto de quem oferece. Ruth e Fernando Henrique acumularam livros dedicados por amigos e colegas de profissão, simultaneamente. Os limites entre o plano profissional e social se dissolvem, transformando orientandos e colegas em uma confraria fraterna. A escolha de obras de ofertadas por autores de áreas tangentes do conhecimento somam 40 anos de panorama intelectual.

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Para Ruth e Fernando Henrique, com votos ardentes para que retornem rapidamente ao Brasil, e com a amizade ainda maior de Florestan Fernandes 20/8/64.

A paixão de Florestan Fernandes pela sociologia levou FHC a se dedicar à essa matéria, que tem naquele um dos maiores expoentes do País. Fernando Henrique e Ruth foram seus alunos no curso de Ciências Sociais e depois de formado ele seria seu assistente na Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas e na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Ruth defendeu seu mestrado na cátedra de Florestan e o casal em depoimento de memória, contou entre risos, que quando alunos, na Biblioteca Mário de Andrade, procuravam os livros consultados pelo professor que tinha fama de difícil, para identificar notas que porventura tivesse deixado. A amizade ultrapassou a academia e as discordâncias políticas e no fim dos anos 1980 foram colegas na Assembleia Nacional Constituinte, FHC senador pelo PSDB e Florestan, deputado federal pelo PT. A dedicatória é da época do exílio da família Cardoso, depois do Golpe de Estado de 1964.

A integração do negro à sociedade de classes de Florestan Fernandes.
1964.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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À Ruth e ao Fernando, ─ este livrinho que só para em pé quando aberto ─ Leôncio, SP, 20/11/74.

Leôncio Martins Rodrigues, cientista político e professor, foi membro fundador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, em 1969, com Fernando Henrique Cardoso e outros professores afastados da atividade docente pela ditadura militar. Ele estava lá quando escreveu este livro. Mas muitos anos antes, no primeiro ano do ensino médio, fora aluno de Ruth Cardoso na disciplina História do Brasil, quando ela ainda cursava a Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP.  A influência sobre o adolescente se completou mais tarde, no Centro de Estudos de Mão de Obra, curso ligado à Secretaria do Trabalho onde Leôncio era escriturário. Nesse momento ela explicou a ele o escopo do curso de Ciências Sociais e o ganhou para a causa. O tom da dedicatória atesta a longa intimidade desse convívio.

Trabalhadores, sindicatos e industrialização de Leôncio Martins Rodrigues.
1974.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Para Ruth e Fernando Henrique com a estima fraternal do Celso. São Paulo, 1975.

Fernando Henrique conhece Celso Furtado em 1962, quando foi para Recife fazer pesquisa sobre o papel dos empresários no desenvolvimento econômico do País e Celso era diretor-superintendente da Sudene, Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste. A amizade se fortaleceu quando Cardoso chegou a Santiago do Chile, em 1964, fugindo da perseguição da ditadura militar e foi convidado a trabalhar na Cepal, a Comissão Econômica para a América Latina, órgão da ONU, um centro de debates históricos e políticos, onde Celso trabalhara. Moraram juntos por um tempo. Para FHC, o livro seminal de Furtado, “A Formação Econômica do Brasil”, o fez compreender as mudanças ocorridas no país e seu autor teria sido o grande renovador da visão sobre a economia e um farol para as próximas gerações.

Teoria e política do desenvolvimento econômico de Celso Furtado.
1975.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Para Ruth e Fernando, histórias antigas com uma amizade sempre presente. Boris. 3-8-76.

Boris Fausto é historiador, advogado e cientista político, autor de obras referenciais da historiografia brasileira. O que talvez não se saiba é que ele também pôs à prova a sensibilidade e o domínio da língua, escrevendo poesia. Isso foi em 1949, no primeiro número da “Novíssimos”, quando, com Fernando Henrique, os irmãos Campos, Décio Pignatari e outros, fundou essa revista de ensaios e literatura, “veículo de propagação dos valores mais moços de todo o país”. Anos depois, já casado, aprofundou a amizade com Ruth e FHC, tendo como pano de fundo a proximidade das casas de campo, em Ibiúna e o jogo de pôquer. Nesse livro, marco do estudo da classe operária, Fausto, aborda entre outras, uma questão nevrálgica da época: a passividade da classe operária, que inquietava os intelectuais após o golpe de 1964.

Trabalho urbano e conflito social de Boris Fausto.
1976.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Pour Fernando Henrique et pour Ruth, ce livre qui doit tout à tout le group du Cebrap et surtout à son principal orienteur intellectuel.

Alain Touraine homenageia FHC nessa dedicatória, como líder do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, criado em 1969. Mas a ligação de ambos remonta ao início dessa década, quando Touraine convida Fernando Henrique a cursar a pós-graduação no Laboratoire de sociologie industrielle da Universidade de Paris. A ligação vinha também pela amizade de Ruth com sua esposa Adriana, uma chilena, com quem devem ter convivido no exílio, em Santiago. Sociólogo francês, Alain Touraine manteve na década de 1970 um diálogo constante com autores brasileiros e orientou nove teses sobre o Brasil em universidades da região parisiense, todas dedicadas ao estudo de atores sociais no contexto de sociedades dependentes.

Les sociétés dépendantes de Alain Touraine.
1976.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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À Ruth e ao Fernando Henrique, recordando os velhos tempos em que este livro foi imaginado, com a amizade e admiração do Fernando.

Fernando Novais, um dos mais importantes historiadores brasileiros, certamente conviveu com Ruth e Fernando Henrique Cardoso nos edifícios da Rua Maria Antônia, que abrigava todos os cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, entre 1949 a 1968. Em 1958 liderou com FHC o grupo de estudos interdisciplinar que leu e discutiu “O Capital”, de Karl Marx. Na dedicatória de seu livro, que lança uma visão inovadora sobre as relações entre o Brasil e Portugal, é provável que ele esteja se referindo a esse passado de debates e descobertas.

Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808) de Fernando Antonio Novais.
1979.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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A Ruth e Fernando, esta lembrança de Paris, com sucesso e a amizade do Roberto da Matta. Maio de 1981.

O antropólogo Roberto da Matta, estudioso das festas populares, das manifestações religiosas, da literatura, da arte, dos costumes e dos esportes revelou como poucos a cultura brasileira. Pesquisou o espaço da rua e suas regras, ou a ausência delas e oferece ao casal de quem sempre foi próximo uma dedicatória alusiva a outras ruas que certamente palmilharam juntos. A lembrança de Paris talvez remeta a um episódio que Roberto da Matta não se furta a relatar: nos anos 1980 ele apresentava pela primeira vez, suas reflexões sobre o Brasil e o futebol a uma plateia de marxistas brasileiros, sob uma nuvem de mau humor sectário. O elogio inicial de FHC desarmou o grupo e baixou o tom – certamente não é algo que dê para esquecer.

Universo do carnaval: imagens e reflexões de Roberto da Matta.
1981.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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A Ruth e Fernando Henrique, com toda a melhor amizade (da admiração nem se fala) do José Guilherme, Rio VIII/82.

Diplomata, cientista político e crítico literário são algumas das atividades de José Guilherme Merquior, erudito brilhante e polêmico pela postura crítica ao marxismo, o que lhe valeu distanciamento da intelectualidade acadêmica. A abertura do casal não excluiu o escritor e ensaísta do círculo de conhecidos. E coincidentemente, o discurso de posse de Fernando Henrique Cardoso na Academia Brasileira de Letras, em 2013, avaliou a importância de Merquior, que morto prematuramente preenchera a cadeira 36, agora ocupada por Cardoso.

A natureza do processo de José Guilherme Merquior.
1982.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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À Ruth e ao Fernando com as saudades (Brooklin, Londres, Paris, Itália…) do Bento.

Filósofo, crítico literário, escritor, tradutor e poeta, Bento Prado foi docente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP nos anos 1960 e como FHC, desligado do cargo por decreto presidencial. Viveu experiências marcantes com o casal como a recepção a Simone de Beauvoir e Jean Paul Sartre, em Araraquara e em São Paulo, e frequentou o grupo de leitura de “O Capital”. O livro “Alguns ensaios” é dos mais importantes de sua produção e a dedicatória alude ainda a outros lugares pelos quais talvez tenha passado e vivido experiências memoráveis em companhia do casal.

 

 

Alguns ensaios: filosofia, literatura, psicanálise de Bento Prado Jr.
1985.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Para Fernando Henrique Cardoso como expresión del afecto de Raúl. Eliana Dias de Prebisch. [viúva de Raul Prebisch], Bs. Aires, julio 1986.

Economista argentino, Raúl Prebisch foi o mais destacado intelectual da Cepal, Comissão Econômica para a América Latina, órgão da ONU, um centro de debates históricos e políticos onde trabalhou Fernando Henrique Cardoso depois de deixar o Brasil, em 1964, perseguido pela ditadura. Segundo a visão de Cardoso ele era uma inspiração para o grupo, profundo conhecedor de economia, fundador e primeiro diretor-geral do Banco Central da Argentina, autor de livro sobre Keynes. Na dedicatória feita por sua viúva para o livro lançado no ano da morte de Prebisch, ela atesta o afeto que o marido dedicava ao colega.

La crisis del desarrollo argentino: de la frustración al crecimiento vigoroso de Raúl Prebisch.
1986.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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À Ruth e ao Fernando Henrique, com a amizade de sempre, sempre renovada. 26/9/86 Bolivar Lamounier.

Sociólogo e cientista político, Bolívar Lamounier trabalhou por dez anos no Cebrap onde investigou o processo eleitoral em São Paulo, o que se tornaria uma de suas linhas de pesquisa e escreveu com FHC um livro sobre partidos e eleições. Suas trajetórias se cruzaram em vários momentos, na resistência contra a ditadura, nos trabalhos para a Constituição de 1988, estreitando a amizade pessoal. Lamounier reconhece a influência intelectual de Fernando Henrique, destacando sua coragem e compromisso com a democracia, sem detrimento do bom humor.

Partidos políticos e consolidação democrática: o caso brasileiro de Bolivar Lamounier e Rachel Meneguello.
1986.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Ao Fernando Henrique, mestre e amigo, este produto longínquo de nosso velho seminário do “Capital”, com um abração, do seu discípulo heterodoxo, Michael.

Michael Löwy, brasileiro e filho de imigrantes austríacos formou-se em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo e desde 1969 radicou-se na França. Destacou-se como um dos mais relevantes estudiosos do marxismo, pesquisador das obras de Karl Marx, Leon Trótski, Rosa Luxemburgo, Georg Lukács, Lucien Goldmann e Walter Benjamin. Sua obra e trajetória expressam essa vocação cosmopolita que, no entanto, nunca o afastou do Brasil, onde viveu suas primeiras experiências políticas e intelectuais. Quase trinta anos depois ele homenageia FHC pela menção aos encontros de leitura de “O Capital”, ponto de partida dos interesses e das críticas que Löwy veio a formular.

 

As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento de Michael Löwy.
1987.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Para Ruth e Fernando, [com apreço], SP. jan. 1989.

A economia de palavras da dedicatória do advogado e professor Celso Lafer levantam duas possibilidades: ou se trata de formalismo ou a amizade é tão próxima que não precisa dizer muito. Lafer, Ruth e Fernando Henrique são amigos de muitos anos e compartilharam momentos significativos de suas vidas. Lafer participou como ministro das Relações Exteriores e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio do governo FHC. Foi também embaixador do Brasil junto à Organização Mundial do Comércio, OMC e a ONU, entre 1995 a 1998. Desses postos observou de perto os embates com a realidade e saiu atestando que haviam sido ganhas as batalhas para assegurar ao país a governabilidade democrática.

A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt de Celso Lafer.
1988.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Para Ruth e Fernando Henrique en toute amitié e um abraço cordial Inácio.

Economista e sociólogo polonês, naturalizado francês, Ignacy Sachs foi um dos primeiros a elaborar o conceito do ecodesenvolvimento, crescimento econômico no contexto do desenvolvimento social e da proteção ao meio ambiente. Em 1941 sua família se refugiou no Rio de Janeiro, fugindo da perseguição nazista. Aqui se formou, tornou-se pesquisador e sempre se sentiu vinculado ao país que o acolheu, atribuindo ao Brasil uma liderança potencial entre os países do Sul pelo desenvolvimento sustentável. Ruth Cardoso era amiga da mulher e da filha de Sachs e FHC sempre esteve próximo, interessado no debate sobre a sustentabilidade. Na França Sachs criou, em 1985, o Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo e foi sempre um interlocutor importante dos governos na sua área de especialização.

Estratégias de transição para o século XXI: desenvolvimento e meio ambiente de Ignacy Sachs.
1993.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Ruth e Fernando. Este livro é dedicado a vocês porque me fizeram ser como sou com afeto, carinho, paciência, compreensão e amor. Nunca poderei ser grato o suficiente pela infinita dedicação e carinho que vocês tiveram por mim. Vocês são os autores do autor – e por isto desejo-lhes toda a felicidade do mundo, além de boas horas de leitura. Um abraço do Caldeira. 4/4/95.

Jorge Caldeira é jornalista, escritor, cientista político e muito próximo da família, a partir da amizade com Paulo Henrique Cardoso, filho mais velho de Ruth e Fernando Henrique. Recebeu deles os sentimentos prodigalizados aos filhos e essa dedicatória é testemunho e prova dessa relação compartilhada.

Mauá: empresário do império de Jorge Caldeira.
1995.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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À Ruth, amiga de sempre. Ao Presidente Fernando Henrique, esperança de todos nós brasileiros. Com admiração e afeto do Abreu Sodré.

Roberto de Abreu Sodré foi advogado, empresário e político. Iniciou sua vida pública em 1945, durante o processo de redemocratização pós Getúlio Vargas, quando voltaram a se constituir os partidos. Ele foi fundador da União Democrática Nacional, a UDN, legenda pela qual se elegeu deputado estadual. Foi o primeiro governador eleito indiretamente entre 1967 e 1971 sob o governo militar, e na presidência Sarney assumiu a pasta das Relações Exteriores. Paralelamente foi fazendeiro e cafeicultor. Sodré apoiou a criação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, em 1969, quando era governador de São Paulo, em um momento difícil para os que haviam perdido seus cargos como docentes na Universidade de São Paulo.

No espelho do tempo: meio século de política de Roberto de Abreu Sodré.
1995.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Para Ruth y Fernando Henrique, este intento de reflexión concreta sobre una gran experiencia histórica que marcó nuestras vidas. Con la amistad de Manolo, San Francisco, 10 Marzo 1996.

Manuel Castells é um dos mais prestigiosos sociólogos da atualidade, conhecido pelos seus estudos sobre a rede de informações que enforma a sociedade contemporânea globalizada. Expulso da Espanha pelo franquismo formou-se em Sociologia pela Universidade de Paris, onde teve Alain Touraine como mentor e lecionou na Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde foi professor de Sociologia e Planejamento Urbano e desenvolveu, ao longo de 24 anos, a parte central de sua carreira. Em todas essas instituições Fernando Henrique, Ruth e Manolo conviveram e cultivaram amizade e mútua admiração, expressa em artigos, prefácios, posfácios e nesta dedicatória.

The collapse of soviet communism: a view from the information society de Manuel Castells e Emma Kiselyova.
1995.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Para Ruth ler pro Fernando Henrique. Brasília, agosto 1996.

Darcy Ribeiro foi antropólogo, historiador, sociólogo e escritor, dedicado sobretudo aos estudos de povos indígenas e à educação brasileira. Ocupou cargos públicos no Ministério da Educação e chefiou a Casa Civil do governo João Goulart. Depois de cassado e exilado foi eleito vice governador do primeiro governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro e depois senador da República. Tanto Ribeiro como FHC absorveram a onda crítica do pensamento da Cepal, engajaram-se na resistência democrática à ditadura militar, filiaram-se a partidos políticos e produziram trabalhos teóricos importantes na literatura social da América Latina. Darcy foi amigo próximo de Fernando Henrique e dos seus pais, lembrando que Leonidas Cardoso era deputado federal pelo Rio de Janeiro quando Darcy foi chefe da Casa Civil. Essa amizade era estreita também com Ruth que partilhava com ele a causa da educação.

 

O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil de Darcy Ribeiro.
2. ed. 1995.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Para Ruth e Fernando Henrique, este testemunho de que, por caminhos diferentes, estamos tentando dar sentido a esta duvidosa certeza; com o abraço do Giannotti, SP 21/08/2000.

José Arthur Giannotti é filósofo e foi contemporâneo do casal na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde começou uma amizade que dura até hoje. Ele foi com Fernando Henrique, fundador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap, onde trabalhou seguidamente com Ruth Cardoso. Mas antes disso um marco: ele foi o idealizador da leitura do livro “O Capital”, propondo um estudo acadêmico e interdisciplinar de uma obra até então abordada apenas como base para doutrina política. A nova prática de leitura rendeu frutos para a vida universitária e o seminário tornou-se uma referência. A dedicatória de Giannotti, cinquenta anos passados, atualiza a amplitude da herança marxista que admitiu caminhos diversos, tudo temperado com uma “duvidosa certeza”, como é a praxe da ciência.

Certa herança marxista de José Arthur Giannotti.
2000.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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À Ruth e ao Fernando, ─ a quem este livro muito deve, como está registrado no prefácio, mas também depois de lançado, como se pode ler no “Esboço de Figura”, ─ com o abraço sempre afetuoso do Antonio Candido.

Crítico literário, sociólogo, professor universitário, Antonio Candido foi referência unânime na área da cultura, considerado por Fernando Henrique o melhor expositor de aulas, inexcedível como historiador da literatura e como sociólogo. Enfrentaram juntos a prova de manter de pé a revista “Argumento” e perderam a batalha para a censura do governo Médici, na companhia de um time forte de intelectuais. Ruth sempre foi próxima de Gilda Mello e Souza, que fazia parte do setor da Ciência Política, onde ambas trabalhavam. Nos anos 1980, Candido iria divergir de Fernando Henrique quando participou do processo de fundação do Partido dos Trabalhadores, mas isso não arranhou a relação entre os casais. O livro dedicado ‘à Ruth e ao Fernando’ é um clássico da sociologia que inaugura toda uma vertente de estudos sobre populações rurais e o processo de modernização no Brasil.

Os parceiros do Rio Bonito de Antonio Candido.
9. ed. 2001.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

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Para Ruth amiga, parceira, conselheira, para retomar o diálogo e a parceria. Eunice.

Antropóloga, professora e próxima de Ruth, Eunice Durham a conheceu em 1956, quando dividiram a cadeira de Antropologia na Universidade de São Paulo, seguindo ambas a linha da Antropologia Cultural, apesar de preferências diferentes quanto aos temas de pesquisa. Ambas migraram da Antropologia para a Ciência Política, assumindo corajosamente as discordâncias com alas mais tradicionais da instituição. Eunice foi coautora de Ruth em muitos textos e criaram juntas o Seminário de segundas-feiras, onde debatiam teoria e aspectos práticos de investigação com os orientandos. As duas questionaram determinismos dos métodos de pesquisa, admitiram o papel da subjetividade do pesquisador no trabalho de campo e pensaram em como lidar com ela. A dedicatória de Eunice resumiu os níveis de relação entre as duas e expressava a vontade de que a amiga, passado o envolvimento com as funções de primeira-dama, voltasse à parceria científico-afetiva.

A dinâmica da cultura de Eunice Ribeiro Durham.
2004.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Deixando entrever relações de Estado

Para FHC

A oferta de livros integra o cerimonial de Estado, no qual as trocas de presentes simbolizam a cordialidade entre representantes de países. No Palácio da Alvorada, o Presidente teve a sua Biblioteca enriquecida por livros recebidos como homenagem, de conhecidos e desconhecidos. Projetos em prol de objetivos comuns aproximaram líderes políticos para além do exercício de seus cargos, como o grupo The Elders e a Comissão Global de Políticas sobre Drogas. E alianças entre nações, como o Mercosul, atualizaram as relações entre líderes da América do Sul. Tais relações podem ser conferidas nas dedicatórias de livros oferecidas, formais, mas sem perder a ternura jamais.

Deixando entrever relações de Estado

Para Fernando Henrique Cardoso, afectuosamente Raúl R. Alfonsín.

Raúl Alfonsín, advogado e político, foi presidente da Argentina e com Fernando Henrique Cardoso manteve reuniões regulares em prol do Mercosul, marcadas pela confiança e o respeito mútuos. Em passagem do livro de memórias, “Diários da Presidência”, FHC relembra um jantar no Palácio da Alvorada, no qual Alfonsín relatou que o ex-presidente Jimmy Carter o sondara sobre a participação solo da Argentina no Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte – sigla em inglês) ao que ele teria respondido: “seria inconcebível, porque temos [Argentina e Brasil] uma aliança”.

La cuestión Argentina de Raúl Alfonsín.
1980.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Deixando entrever relações de Estado

Para el Senador Fernando H. Cardozo, el resumen de um largo esfuerzo, com la amistad de Julio María Sanguinetti. 85.

Julio Sanguinetti, político, advogado, jornalista e historiador, foi presidente do Uruguai. Fernando Henrique e Sanguinetti conheceram-se nos anos 1980 e sua relação como chefes de Estado foi marcada pela proximidade. Em visita ao Uruguai durante o primeiro mandato, FHC esteve na residência de Sanguinetti e se recorda dele como “um homem de grande visão, inteligente, culto, mostrou muitos quadros, me deu de presente um muito bonito de um pintor uruguaio, me mostrou a coleção que eles têm na residência oficial, tudo no plano de amizade, uma conversa de pessoas com uma visão semelhante do mundo”. Por ocasião dos 80 anos de Fernando Henrique, Sanguinetti o homenageou: “nada do que se passou no Brasil nesses anos se pode entender sem essa figura de um grande professor, intelectual e político.”

Cuatro años de democracia de Julio María Sanguinetti.
1989.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Deixando entrever relações de Estado

A Fernando Henrique – grande Presidente – e a Ruth, queridos amigos, com um afetuoso abraço do vosso fiel admirador (de ambos) e muito dedicado, Mário Soares Lisboa, Nov. 2002.

Mário Soares, considerado pai da democracia portuguesa pós Salazar, foi presidente e primeiro-ministro de Portugal. O autor e Fernando Henrique conheceram-se em 1969, em São Paulo e mantiveram um diálogo que resultou na obra conjunta “O mundo em português: um diálogo”. Trocaram opiniões sobre economia, história, cultura, política e eleições, documentadas em horas de gravação durante dez dias sucessivos para a realização do livro. A relação construída para além da política, pode ser comprovada na dedicatória e em declarações de Soares – “nunca, das muitas vezes que fui ao Brasil, deixei de ver Fernando Henrique e a sua tão inteligente e bondosa Esposa, que tanto admirava”, e, também, de FHC – “escrevemos juntos, dialogamos por décadas, eventualmente discrepamos, nunca perdemos a amizade, e eu, a admiração por ele”.

 

Mário Soares: entretien avec Dominique Pouchin de Mário Soares.
2002.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Deixando entrever relações de Estado

To Fernando Henrique and Ruth Cardoso with gratitude for your friendship and leadership. Bill Clinton. 4 23 June 2005.

Bill Clinton, advogado e político, foi presidente dos Estados Unidos por dois mandatos e construiu com Fernando Henrique uma amizade que se estendeu a Hillary e Ruth. O exemplar dedicado revela a proximidade entre os líderes, em passagem da obra, onde Clinton reconhece o amigo como: “um dos mais impressionantes líderes que já encontrei”. Ele foi também o prefaciador do livro The accidental President of Brazil: a memoir, escrito por Fernando Henrique em coautoria com Brian Winter, depois publicado no Brasil.

Minha vida de Bill Clinton.
2004.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Deixando entrever relações de Estado

To my friend and mentor Fernando Henrique with admiration & respect. Tony Blair.

Tony Blair foi membro do Parlamento Britânico e primeiro-ministro do Reino Unido. Fernando Henrique, no livro de memórias “Diários da Presidência” conta: “simpaticíssimo como costuma ser, foi até a rua me receber”. Como chefes de Estado mantiveram uma relação de apoio mútuo. Para além dos protocolos, o casal Cardoso hospedou-se na casa de campo dos Blair, contando com a possível passagem de Bill Clinton para o final de semana. A mútua admiração e amizade comtemplada na dedicatória também se confirma no prefácio de FHC para o livro de Blair “Minha visão da Inglaterra”.

A journey de Tony Blair.
2010.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Deixando entrever relações de Estado

To Fernando Cardoso. Best wishes. Nelson Mandela. 22.11.2010.

Líder político, símbolo dos direitos humanos do século XX e grande nome mundial da luta anti-apartheid, Nelson Mandela foi presidente da África do Sul e laureado com o Nobel da Paz. Fernando Henrique e ele estiveram juntos diversas vezes em encontros oficiais e estabeleceram uma relação que ultrapassou o profissional. No grupo The Elders, fundado em 2007 por Mandela e pelo arcebispo Desmond Tutu, também militante contra o apartheid, tiveram a oportunidade de, com outros líderes, colocarem sua experiência política e autoridade moral a serviço das causas da paz e da justiça. FHC prefaciou o livro “Longa caminhada até a liberdade: a autobiografia”, escrito por Mandela, onde declara: “é um desses seres humanos raríssimos que tem uma ‘aura’ própria, um magnetismo que não se sabe bem de onde vem, mas que contagia a todos.”.

Conversations with myself de Nelson Mandela.
2010.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Deixando entrever relações de Estado

To Fernando Henrique, with friendship, respect and admiration Kofi Atta Annan para 07 May 2013.

Kofi Annan, diplomata ganês, foi o sétimo secretário-geral da Organização das Nações Unidas e laureado com o Nobel da Paz. Para além do convívio durante os dois mandatos, Fernando Henrique presidiu o Painel de Pessoas Eminentes sobre Relações entre a ONU e a Sociedade Civil, criado por Annan. Participaram também do grupo The Elders, criado por Mandela e Tutu, e da Comissão Global de Políticas sobre Drogas. Uma convivência que compartilhou objetivos de ultrapassar impasses e mediar conflitos

Interventions: a life in war and peace de Kofi Annan e Nader Mousavideh.
2012.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Deixando entrever relações de Estado

Para Fernando Henrique con quien he tenido el privilegio de compartir sueños, y también buena parte de esta vida!! [RL].

Ricardo Lagos, político, advogado e economista, foi presidente do Chile. Morava perto de Fernando Henrique, em Santiago do Chile, quando ele esteve exilado, depois do Golpe Militar de 1964. Na ocasião da posse de Lagos, FHC declarou seu amor ao Chile, país considerado um pouco como sua terra. Amigos e políticos, compartilharam além de agendas oficiais, a participação na Comissão Global de Políticas sobre Drogas, e em setembro de 2020, assinaram com outros líderes latino-americanos uma nota, expressando o temor de que a pandemia de covid-19 provoque na região uma “grave deterioração democrática”. Duas vidas com a América Latina na cabeça e no coração.

 

Mi vida: de la infancia a la lucha contra la dictadura de Ricardo Lagos.
2013.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Dois amantes da literatura

Para Ruth e FHC

Intelectuais são leitores onívoros pois sabem que para além da ciência, a arte levanta véus inusitados sobre o ser humano, a vida e o futuro. A Biblioteca de Ruth e Fernando Henrique Cardoso é rica em ficção e o hábito da leitura sempre fez parte da vida comum. A seleção de livros a seguir, privilegia a crônica e a memória, retratos e impressões de um tempo e seus atores. Os autores, nossos conhecidos, revelam através das dedicatórias, as relações cultivadas de apoio, admiração e amizade.

Dois amantes da literatura

Para Ruth e Fernando Henrique, esta disciplina e este abraço, hasta siempre! Lygia Fagundes Telles, Novembro de 1994.

Lygia Fagundes Telles é uma das nossas mais importantes escritoras contemporâneas, com cadeira na Academia Brasileira de Letras. Ruth e Fernando Henrique, como todos os jovens alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, frequentavam a Livraria Jaraguá, no centro da cidade, onde viam Lygia, “muito bonita, sempre”, conforme declaração de Ruth em depoimento de memória. O livro dedicado ao casal, que a autora declara ser seu preferido, passeia por fragmentos do real e da ficção.

A disciplina do amor de Lygia Fagundes Telles.
7. ed. 1992.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Dois amantes da literatura

Para Ruth e Fernando Henrique, estas histórias de uma longa vida, com admiração e amizade [J.A.], São Paulo 1994.

O escritor baiano Jorge Amado, celebrado pela obra extensa e editada em muitos países, entendeu como poucos o Brasil e a cultura popular, sendo talvez o nosso mais conhecido ficcionista. Manteve amizade duradoura com Ruth e Fernando Henrique, de quem foi apoiador na corrida presidencial. Em carta escrita logo depois da eleição desejou-lhe sucesso no cargo e ponderava que a vitória fora “retumbante, mas não surpreendente”. O livro de memórias oferecido ao casal é um retrato de suas relações com personalidades nacionais e internacionais e da vida política e artística do século XX.

Navegação de cabotagem de Jorge Amado.
1992.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Dois amantes da literatura

Para Ruth y Fernando Henrique, deseándoles el mejor de los éxitos en este momento fronterizo en la historia del Brasil y con mucho afecto [M.V.L.], Sao Paulo, 4 de diciembre de 1994.

Mario Vargas Llosa é escritor, político e foi laureado com o Prêmio Nobel. A obra de memória dedicada ao casal expõe as percepções da militância do autor e sua desilusão após a candidatura à presidência do Peru. Ele e Fernando Henrique compartilham a vivência de intelectuais que ingressaram na vida política e as discordâncias entre ambos não interromperam o diálogo. Cardoso continuou leitor de Vargas Llosa e na obra memorialista “Diários da Presidência” observa: “La fiesta del chavo [A festa do bode] é extraordinário, realmente ele é um grande escritor, nem consigo parar de ler o livro”.

Peixe na água: memórias de Mario Vargas Llosa.
1994.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Dois amantes da literatura

Ruth, Fernando Henrique, Arealva ou Araraquara? Abraço, Loyola. 29.10.98.

Jornalista e escritor premiado, Ignácio de Loyola Brandão tem extensa produção literária, em parte traduzida e pertence à Academia Brasileira de Letras. Dividiu com Ruth Cardoso a cidade de Araraquara, onde também nasceu, e talvez isso o tenha qualificado a ser seu biógrafo, traduzindo-a diretamente do original. Foi aluno de Dona Mariquita, mãe de Ruth, no Instituto de Educação Bento de Abreu e redator do jornal O imparcial, onde o pai dela era contador. Essa convivência de juventude venceu a resistência de Ruth em conceder entrevistas a Loyola para um perfil na revista Vogue: “Conversemos. Mas venha você, um araraquarense, que conhece minha família, meus amigos, meus lugares. Vamos falar só de Araraquara.” A dedicatória brinca com a cidade que os uniu.

O anjo do adeus: sacanas honestos jogam limpo jogos sujos de Ignácio de Loyola Brandão.
2. ed. 1995.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Dois amantes da literatura

Para Ruth, esse “Dama” e o Unicórnio com tantos anos de carinho. Rosiska. Rio, 2000.

Professora, advogada, jornalista e escritora com cadeira na Academia Brasileira de Letras, Rosiska Darcy de Oliveira, luta pelas causas feminista e ambientalista. Conhece Ruth Cardoso em 1971 ao acompanhar Fernando Henrique a Genebra para o seminário Center Europa Terceiro Mundo, organizado por ela e seu marido Miguel Darcy de Oliveira, que viria a assessorar FHC na presidência. Os laços de amizade atravessaram décadas, e ao tornar-se primeira-dama, Ruth, contou com a colaboração de Rosiska à frente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e do programa Comunidade Solidária. O livro de crônicas reúne a defesa das ideias da autora, opiniões e devaneios.

A dama e o unicórnio de Rosiska Darcy de Oliveira.
2000.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Marca de um legado

De FHC para Ruth

As dedicatórias são bilhetes apostos, manuscritos pelos autores para agradecer o prestígio da presença no lançamento de um livro. Mas podem também ser definitivas, como a que se segue, impressa na obra para o conhecimento de todos.

Reportagem fotográfica.
São Paulo, SP, 2 set. 1994.
Acervo Pres. F. H. Cardoso.

Marca de um legado

Para Ruth

Este é um livro de síntese e legado, um balanço de Fernando Henrique quatro anos depois de terminada a gestão presidencial. A dedicatória só precisa de duas palavras para evidenciar quem o acompanhou mais de perto nessa aventura. Soa como homenagem e agradecimento.

 

 

A arte da política: a história que vivi de Fernando Henrique Cardoso.
2006.
Acervo Ruth Cardoso e Fernando Henrique Cardoso.

Bibliografia

ABREU, Alzira Alves de (Coord.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro: pós 1930. 2. ed., rev. e atual. Rio de Janeiro: CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), 2001. 5 v., il.

BRANDÃO, Ignácio de Loyola. Ruth Cardoso: fragmentos de uma vida. Posfácio de Manuel Castells. São Paulo: Globo, 2010. 300 p., il., fotos. ISBN 9788525049162.

CARDOSO, Fernando Henrique. Fernando Henrique Cardoso IV: depoimento. Rio de Janeiro: CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), 2011. (2h 8 min).

CARDOSO, Fernando Henrique. Diários da Presidência: 1995-1996. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. v. 1 (929 p.). ISBN 9788535926545.

CARDOSO, Fernando Henrique. Diários da Presidência: 1997-1998. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. v. 2 (868 p.). ISBN 9788535927214.

CARDOSO, Fernando Henrique. Diários da Presidência: 1999-2000. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. v. 3 (850 p.). ISBN 9788535928709.

CARDOSO, Fernando Henrique. Diários da Presidência: 2001-2002. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. v. 4 (1017 p.). ISBN 9788535932638.

CARDOSO, Fernando Henrique; LAFER, Celso. Discurso de posse; Discurso de saudação: cadeira 36 da Academia Brasileira de Letras, 10 de setembro de 2013. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 68 p. ISBN 9788535923940.

DAHER, Andrea. Na ordem dos livros: dentro da Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso. 2018.

FARAH, Suely (Ed.) Memória Oral: Fernando Henrique Cardoso e Ruth Cardoso: depoimentos a Daisy Perelmutter. São Paulo: Biblioteca Mário de Andrade, 2005.

FAUSTO, Boris. Boris Fausto II: depoimento. Rio de Janeiro: CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), 2010. (1h 18min).

GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia, São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. (Artes do Livro, 7). ISBN 9788574804583.

LAMOUNIER, Bolivar. Bolivar Lamounier: depoimento. Rio de Janeiro: CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), 2012. (3h 16min).

REVISTA DE NOVÍSSIMOS. São Paulo, ano 1, n. 1, jan.-fev. 1949.

RODRIGUES, Leôncio Martins. Leôncio Martins Rodrigues: depoimento. Rio de Janeiro: CPDOC/Fundação Getulio Vargas (FGV), 2008/2011. (3h 34min).

Ensaio

Na ordem dos livros: dentro da Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso

por Andrea Daher

No sexto andar de um prédio imponente, no centro de São Paulo, está a Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso. É de se imaginar que os livros que a compõem façam parte de um conjunto muito maior, conservado na Fundação que leva o nome do presidente, cuja vocação é a de promover a produção e a reprodução de conhecimento em torno de questões sociais e políticas sobre o Brasil, sobre o mundo, sobre o Brasil no mundo. Como toda instituição dotada de uma missão como esta e da função de “lugar de memória”, conservando o que foi e projetando o que será, a biblioteca não pode deixar de preservar e disponibilizar os livros que lhes são afins.

Desde a sua situação física, no interior da Fundação, até o título que leva, a Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso parece ter como ponto de partida do seu
ordenamento a representação de um presidente e de uma “primeira dama” leitores – e, não menos, escritores. É claro que uma competência como esta não se restringe ao momento político da trajetória de ambos, embora, à primeira vista, a biblioteca esteja relacionada mais imediatamente a ele, razão de ser da própria instituição que a abriga.

Muito já foi dito sobre a relação entre cultura letrada e política, nos dois sentidos que a expressão dá a entender: o dos usos das letras na política; e o dos usos letrados da política. O primeiro refere-se a práticas um tanto antigas, relacionadas a um regime discursivo marcadamente retórico, num tempo em que a coesão nacional se expressava, antes de mais nada, na história e na literatura da nação. O segundo corresponde à profusão de discursos que decorrem da própria prática política e se apoiam num universo letrado particular que lhes dá sentido, num momento histórico preciso.

Em ambos os casos, está em jogo a própria representação do poder. Ela não deixou de estar estampada, na contemporaneidade, na presença de bibliotecas e de livros no ambiente em que se mostram os chefes de Estado. O caso francês é emblemático e revela algumas modalidades, mais ou menos orientadas, da dimensão simbólica dessas representações.

Em 1981, a fotografia oficial do presidente da república francesa mostrava François Mitterrand segurando, em suas mãos, um volume dos Ensaios de Montaigne. A
foto de Gisèle Freund flagra o presidente como se tirasse os olhos do livro e os voltasse diretamente para a câmera, com a imponente biblioteca do Eliseu ao fundo. Freund, então aos 87 anos, havia antes fotografado André Malraux, Jean-Paul Sartre, Marguerite Yourcenar e Samuel Beckett, entre outros, sugerindo talvez, com a fotografia oficial do novo chefe do Estado, a sua introdução no rol de figuras do mundo letrado, na qualidade explícita de leitor.

Muito antes, Charles de Gaulle, homem de “letras e armas” por excelência, já havia deliberadamente escolhido a biblioteca para seu retrato oficial, feito por Jean-Marie Marcel. Numa continuidade sem dúvida desejada, Georges Pompidou também se fez fotografar no mesmo cenário por François Pages, assumindo irrecusavelmente o legado simbólico de seu predecessor.

Passadas muitas décadas, a fotografia oficial de Emmanuel Macron teve excluída a imagem de fundo da biblioteca em prol de uma janela aberta para os jardins do Eliseu, onde seu predecessor, François Hollande, havia posado quatro anos antes. O livro não deixa, no entanto, de estar presente na cena de Macron: imortalizando o lugar em que trabalha, na sua mesa do Palácio do Eliseu estão postos dois smartphones (um deles reflete na tela a estatueta do galo, símbolo da França), dois notebooks, um relógio, dois livros empilhados (Nourritures terrestres, de André Gide, e Le Rouge et le Noir, de Stendhal) e um livro aberto, Mémoires de guerre, de Charles de Gaulle. Em tempos de marketing político, nada, nesse clichê de Soazig de Moissonière, é gratuito, sobretudo o livro de De Gaulle aberto sobre a mesa, em coerência com a representação desejável de uma presidência forte, em “letras e armas” modernas.

O percurso das representações dos retratos oficiais dos presidentes franceses pode levar a conclusões imediatas, é claro, sobre a figura do homem político junto aos símbolos da nação, particularmente expresso na presença do livro e das bibliotecas, até o cúmulo de saturação simbólica provocada pela última foto. As especificidades do caso francês – sobretudo a disposição sociocultural encontrada em práticas de escrita, de edição e de leitura bastante sólidas, na França – explicam muito do efeito potencialmente provocado na recepção das imagens oficiais de seus presidentes. Na sucessão desses retratos, a biblioteca deixa, pelo visto, de ser apenas o quadro de fundo, quando sua representação se completa tanto pela presença do livro aberto quanto do gesto de leitura.

De todas as fotografias oficiais de presidentes da república brasileira – advogados e militares, em sua grande maioria –, a única que tem por cena de fundo uma biblioteca, a do Palácio da Alvorada, é, justamente, a do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, realizada por Getúlio Gurgel, em 1999. Isso não diz nada, em princípio, do valor intelectual da figura do presidente, mas a singularidade desta foto na galeria de retratos oficiais diz algo sobre o valor dos livros na representação do poder presidencial no Brasil. Em todo caso, uma vez presentes na fotografia, eles participam da dupla dimensão exibida nesses retratos: a da figura pública, na presença imaterial do Estado encarnada em seu “chefe”; e da figura privada, particularizada no corpo físico do retratado.

A Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso funciona também como um indício dessa dupla dimensão, materializando as representações de um presidente e de
uma “primeira dama” inseridos através de seus livros, no seu tempo. É claro que a carreira acadêmica, os títulos honoríficos, o pertencimento a instituições nacionais e internacionais são representações que falam por si mesmas quanto à consagração letrada dessas duas figuras públicas. No entanto, essas evidências, ao invés de nos situar dentro da biblioteca, nos levam exclusivamente para fora dela e esvaziam os sentidos que ela, no seu silêncio e na sua presença monumental, encerra.

O convite aqui, portanto, é outro: entrar na Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso e perscrutar a lógica que governa sua ordenação e as representações que se destacam da simples presença dos livros nela reunidos, variando os pontos de vista, dentro e fora dela. A maior parte desses livros traz, sem dúvida, os temas que mobilizaram o sociólogo e a antropóloga, ao longo de muito tempo. Sinalizam fortemente também para a “entrada na política” de ambos, sem que deixassem de consumir e adquirir livros, e isso muito além das obras de ciências sociais e política, incluindo os livros de culinária, de arte ou de literatura, como grandes leitores com interesses muito largos que visivelmente foram, e que FHC certamente ainda é.

A ordenação biográfica

Sobre essa biblioteca, muito bem conservada e catalogada, três coisas devem ser  ditas para que se possa seguir neste ensaio. Primeiro, o seu acervo é composto de
impressos – livros, periódicos, folhetos, teses, dissertações – pertencentes aos Cardoso, parte deles recebidos durante o “período presidencial”, entre 1995 e 2002. Como a biblioteca costuma receber ainda muitos livros (cerca de 25 títulos por mês), foram e até hoje são conservados somente aqueles que correspondem a um determinado perfil, no interior de um critério seguramente arbitrado pelos interesses daqueles que lhe dão os nomes e que se inscreve na própria vocação da Fundação, como foi dito: produzir e reproduzir o conhecimento em torno das questões envolvendo o desenvolvimento e a democracia no Brasil, em sua relação com o mundo. Segundo, dela constam aproximadamente treze mil volumes classificados, que se completam com mais alguns mil que FHC guarda em casa – certamente os livros que, por razões diversas, deseja ter sob a mão e os olhos. Por fim, a biblioteca não pode ser arrancada do acervo muito mais largo de objetos, não exclusivamente textuais e iconográficos, que a Fundação abriga, embora, aqui, deva ser submetida a uma operação forçada de isolamento para ser pensada.

Sabe-se que biblioteca é ordem, ou seja, é um espaço por definição regido por um princípio ordenador, e isso porque concentra, materialmente, discursos escritos. É certo que a “ordem do discurso” não é exclusiva à realidade material dos discursos escritos. Porém, a afirmação de uma ordem, expressa em princípios de classificação, ordenação e distribuição dos discursos, se relaciona muito mais estreitamente com o caráter de composição, exigido na própria existência física do escrito, do que com a qualidade de acontecimento do oral. Assim determinada pela fixidez da escrita, a ordem do discurso tem por corolário a ordem dos livros.

Partindo, assim, de um dispositivo biográfico de ordenação – trata-se da biblioteca de Fernando Henrique e Ruth Cardoso –, é possível assumir um ponto de vista “de dentro para fora”, dos critérios classificatórios para a “história vivida” de seus “proprietários”. Todo um conjunto de indícios, em torno da ordenação biográfica da biblioteca, se encontra, é claro, na profusão de materiais relacionados à trajetória de ambos, que vão desde a correspondência, os artigos e entrevistas publicados em jornais e revistas, as fotografias, passando por objetos, na forma de presentes recebidos, até os próprios discursos produzidos em ocasiões e circunstâncias as mais diversas, inclusive oficiais. Aqui, a relação da biblioteca com o resto do acervo conservado na Fundação assume um valor heurístico que dá coerência ao todo.

No entanto, a biblioteca não participa imediatamente da classificação cronológica imposta aos materiais do acervo, de modo geral, que é tripartite, com centralidade
destacada para os anos de presidência: 1931-1994; 1995-2002; e período póspresidencial. O primeiro segmento, composto de documentação textual e iconográfica,
recobre a infância, os estudos, a vida acadêmica, a família, a pesquisa e a produção científica de FHC até a campanha presidencial de 1994, incluindo o período de “entrada na política”, quando foi senador e ministro da Fazenda. O segundo segmento reúne o material, majoritariamente textual, relativo aos dois mandatos presidenciais, caracterizado, significativamente, segundo a lei, como “documentação privada de interesse público”. Trata-se de documentos que vão desde a correspondência oficial, passando impressos de campanhas e movimentos sociais até mensagens enviadas por cidadãos. Essas peças completam um acervo muito mais volumoso doado ao Arquivo Nacional. Por fim, o terceiro segmento, pós-presidencial, relaciona-se à produção de FHC como professor universitário, conferencista, articulista, escritor e conselheiro de entidades nacionais e internacionais.

Pelo visto, se o critério de ordenamento biográfico impera, naturalmente, no acervo da Fundação Fernando Henrique Cardoso, no caso específico dos livros, a
centralidade do “período presidencial” fica apenas sugerida (não fosse pela presença de muitos livros relacionados exclusivamente a Ruth Cardoso ou à história em comum vivida por eles antes). Em todo caso, a biblioteca encerra uma riqueza muito variada de relações, de interesses, de histórias pessoais. Os livros são, tal como a documentação do arquivo, peças “privadas”, embora dotadas de valor de preservação por razões de “interesse público”. Isso significa que o seu conjunto não foi necessariamente construído na e pela política, apenas participa dela e se organiza, no que toca à sua conservação, em torno dela.

Pode-se supor, assim, que a seleção de livros reunidos na biblioteca seja coerente com um universo referencial e formal originado de escolhas de ordem privada, e que não deixa de ser encontrado, inclusive, nos “discursos políticos” – aqueles que tanto o presidente quanto a “primeira dama” formularam no bojo de projetos ou ações que implicavam diretamente as posições que ocupavam. Mesmo sendo muito determinados, na sua confecção, por circunstâncias e constrangimentos de ordem política e social, estes “discursos políticos” podem mostrar a força particular da cultura letrada de seus autores, expressa, como dito, num determinado uso da língua e no universo particular de referências (representações, categorias, conceitos) mobilizadas. Em suma, apesar do seu teor estrategicamente orientado, na era do marketing político, uma particularidade autoral, por mais “constrangida”, não deixa de estar presente nos “discursos políticos” que formularam, em situações diversas, apontando para um tipo de compreensão do mundo marcada por determinadas referências históricas, geográficas, sociológicas, artísticas, literárias etc. que, pode-se dizer, são as suas.

É claro que os livros e artigos que escreveram e publicaram Fernando Henrique e Ruth Cardoso como cientistas sociais, antes da “entrada em política”, concentra esse mesmo conjunto de escolhas formais e referenciais que está potencialmente disperso no conjunto de livros de que foram usuários, muito mais do que simples “proprietários”. Este é o primeiro sentido, e certamente o mais forte deles, que define a biblioteca.

A dimensão subjetiva da leitura e da “arrumação” dos livros

Operando mais uma vez de fora para dentro da biblioteca, pode-se seguir uma dimensão mais individualizada, subjetiva, da sua constituição. Trata-se de entender a
relação dos nomes próprios “Fernando Henrique” e “Ruth” com os livros. Se, como visto, a representação de um presidente da república e uma “primeira dama” leitores (e escritores) ordena um sentido primeiro da biblioteca, resta, no entanto, recuperar, o quanto for possível, a dimensão subjetiva declarada de suas leituras e de suas relações com os livros.

Os Diários da presidência fornecem elementos importantes para isso, em inúmeras passagens, durante os anos que a narrativa recobre. Muito frequentemente,
como conta o então presidente, pessoas mais ou menos próximas lhes ofereciam livros, presentes naturais, sem dúvida, para leitores que eram. Foi assim que numa “noite agradalibíssima”, no Palácio do Planalto, escreve FHC, às vésperas do Natal de 1995, eles receberam a visita de quatro amigos: “todos me trouxeram livros de presente”.

À presença ostensiva de livros, tanto no Planalto quanto na casa de Ibiúna, corresponde a prática, recorrentemente descrita, de “arrumá-los”. Trata-se, como
confessa FHC muitas vezes, de uma forma de repouso: “tentei dar um pouco de ordem a alguns livros, é difícil, mas é um semidescanso.” A recorrência pode ser considerada parte da rotina: “O único fato alheio à nossa rotina de arrumar livros e ver as coisas aqui do Palácio foi a visita do Tom Cavalcante.” E o caráter trivial do gesto rotineiro de arrumar ou de folhear os livros é declarado: “passamos o dia arrumando livros, trabalhando, nada de especial”; “Enquanto arrumava os livros, peguei vários para folhear, mas nada em mais profundidade do que isso. Foi um dia tranquilo.”

A leitura também participa dessa lógica de “matar o tempo”, nos poucos momentos de liberdade ou de lazer que resta a um presidente. Os livros grandes, que
exigem leitura intensiva, por vezes não têm vez na rotina: “Embora seja um livro muito interessante, é grande e não tenho tido tempo suficiente para isso. De qualquer maneira, não deixei o hábito de ler.” É claro que a leitura extensiva de jornais e revistas, ou a leitura fragmentária, como a da poesia ou dos livros de arte que se folheiam, estava sempre na ordem do dia, em especial dos fins de semana: “Estamos […] lendo jornais, alguns papéis. Li muitos livros no sábado e domingo, um de poesias do Neruda com fotografias das casas dele, um livro de memórias que me interessou muito, do Augusto Frederico Schmidt. Li também um panfleto muito bem-feito pelo presidente do Queens’ College, chamado [John] Eatwell […] Enfim, passamos um dia mais intelectualizado.”

Acontece que, para grandes leitores, é difícil a leitura deixar de ser intensiva. Em seus Diários, FHC qualifica muitas vezes os livros que leu, os compara, os relaciona,
como em rápidas resenhas informais. E não deixa de falar da força afetiva que exercem sobre ele, expressa em particular numa passagem em que se refere a José Sarney: “Ambos temos paixão por livros e outras coisas mais, mas a nossa biografia não tem coincidências.” A coincidência biográfica viria, anos depois, e mais uma vez em torno de livros, quando Fernando Henrique Cardoso ingressa na Academia Brasileira de Letras, em que Sarney já ocupava uma cadeira.

Com essas proposições recorrentes, recolhidas dos Diários, formuladas na forma de uma autópsia do próprio cotidiano sob a carga do trabalho da “rotina presidencial”, entende-se que a leitura permitiu ao então presidente instituir uma outra relação com o tempo. E é de se supor que assim fosse também para a “primeira dama”, uma vez que ambos estavam, nesse momento de suas vidas, fora da rotina acadêmica que conheceram por muitos anos, com sua temporalidade própria, cujo ritmo é ditado pelo funcionamento intramuros da instituição universitária, que exige (ou deve exigir) muita leitura e escrita consequente.

A fotografia oficial de François Mitterand com um volume dos Ensaios de Montaigne nas mãos serve mais uma vez, aqui, no seu intuito de significar a consagração
do gesto de “pausa”: pausa, aliás, muito longa, se a metáfora fotográfica sugerir a suspensão da leitura por quatorze anos, durante os dois mandatos presidenciais que se inauguravam com ela. Em todo caso, Mitterand recebeu no Eliseu centenas de escritores com os quais conversou, essencialmente, de literatura, e encarnou a figura de um chefe de Estado que lê e que se isola para ler, até mesmo em momentos de crise política – como se sabe por um episódio, contado por seu conselheiro especial, o escritor Jacques Attali, em que foi encontrado lendo Lamartine. Nessas imagens consagradas, parecem estar sempre representados dois tempos, sendo um a pausa do outro: o do leitor e o do presidente.

Em termos ainda relacionados ao tempo, o presidente Barack Obama, em entrevista a The New York Times, em 2017, qualifica a sua relação com a leitura: ela lhe
servia, dizia ele, para tornar o tempo mais lento, em meio ao tempo rápido dos acontecimentos e ao turbilhão de informações que lhe chegavam numa escala
inimaginável. Tratava-se também, como explica, de se conectar com o “mundo exterior”. Mais do que tornar o tempo mais lento (“the ability to slow down”), o valor da leitura para Obama – e certamente aqui se trata do efeito da leitura de ficção – estava na possibilidade de sair de si, de assumir perspectivas outras, pontos de vistas de outros (“the ability to get in somebody else’s shoes”).

É mais do que compreensível, nessas falas, o caráter encerrado, fechado sobre si mesmo e suspenso no tempo, da posição presidencial. É ela que faz com que o presidente leitor inevitavelmente assuma a suposta liberdade que o “outro tempo”, o da leitura, oferece.

A inscrição acidental na ordem dos livros

Lado a lado com a monumentalidade irrecusável dos livros, dispostos em formas discursivas e materiais bem conhecidas, uma materialidade fragmentária e acidental se impõe: a das incursões manuscritas, em marginálias e dedicatórias. Se a primeira reforça a “ordem biográfica” da biblioteca, a segunda confirma, em certo sentido, a ordem fortemente “autoral” sugerida em cada um dos livros, fornecendo muito da matéria a partir da qual se pode pensar suas funções e os seus usos sociais.

Esses resíduos manuscritos, por mais que “acidentais”, ou seja, circunstanciais e fragmentários, imprimem códigos de natureza diversa à suposta naturalidade do gesto organizador da biblioteca, e permitem observações dotadas de alguma densidade sociológica e histórica. Isso porque tanto as marginálias quanto as dedicatórias transformam a biblioteca em campo de interrogação sobre a construção tensa, sob a força do nome próprio, de figuras consagradas, como cientistas sociais e figuras políticas que foram Fernando Henrique e Ruth Cardoso, frente à trivialidade das relações da vida privada – aliás, tantas vezes sugerida, como visto, à leitura dos Diários.

É nesse sentido que as marginálias e as dedicatórias singularizam materialmente o objeto livro, introduzindo a manuscritura na “ordem impressa”, material e editorial, imposta ao leitor. A singularidade de cada exemplar marcado é, muitas vezes, cifrada, cabendo a quem os manuseia hoje, para decifrá-la, a possibilidade de imaginar as condições em que as marcas se produziram.

1.A memória de uso do livro

Não surpreende que a jovem bibliotecária que cuida da Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso domine claramente os códigos das marginálias, distinguindo
rapidamente as marcas “dele” e as “dela”, que em alguns livros ocupam a mesma página. Lamenta não ter conhecido Ruth, mas pelo visto, ela a conhece como poucos, nas inscrições marginais que deixou nos livros.

Enquanto Fernando Henrique marcava os livros com caneta, Ruth Cardoso costumava intervir na página com lápis, sublinhando as passagens importantes, e comentando ou simplesmente sinalizando o que lera, com um termo ou outro, no espaço marginal do texto. Por sua vez, é raro encontrar uma intervenção feita por FHC com palavras: nas margens dos livros que leu aparece, muitas vezes, um símbolo, rabiscado a tinta, como um jogo-da-velha, por vezes único, por vezes duplicado (denotando, talvez, uma dupla atenção). Nota-se, também, que ele costumava dobrar a pontinha da página dos livros, certamente para indicar onde parou a leitura, ou para sinalizar uma página que contivesse algo que considerasse importante. Hoje, a cada vez que encontra uma dessas dobras, a bibliotecária se empenha, cuidadosamente, em desfazê-la, impondo, como é de se esperar, o protocolo de conservação do livro à memória de uso do texto lido.

2. A marca da memória compartilhada

Por sua vez, as dedicatórias vêm desestabilizar um pouco do sentido unívoco suposto na presença ostensiva dos dois nomes próprios na biblioteca. Os textos das
dedicatórias têm uma tipologia variada, que se presta tanto à reconstrução imaginativa de suas circunstâncias quanto a uma definição mais sociológica da prática de dedicar livros. Considerando, assim, o seu caráter subjetivo, fragmentado, e sua inserção no espaço fechado e imponente do livro, é possível propor uma tipologia das dedicatórias encontradas nos livros da biblioteca, tendo por base a descrição física dos seus vestígios e a suposição de seus efeitos para um leitor que tem, hoje, um desses exemplares nas mãos.

Segue-se aqui, de preferência, com essa tipologia das inscrições encontradas nos livros, mais conveniente do que a lógica relacional dos nomes daqueles que as assinam, que acabaria por inundar este ensaio com uma grande carga subjetiva. Por mais que ela tenha centralidade nas expressões de afeto, de amizade ou de admiração que tipificam as dedicatórias, de modo geral, trata-se de fazer apenas com que indiciem tipos de relação estabelecidas na “história vivida” por Fernando Henrique e Ruth Cardoso.

Há, como se sabe, dois tipos de dedicatórias. Primeiro, há aquelas escritas pelo próprio autor do livro, que são maioria na biblioteca e costumam levar a marca de uma memória compartilhada. Elas são encontradas ao longo de toda a trajetória dos Cardoso, sobretudo muito antes de FHC tornar-se chefe de Estado, indicando simplesmente que eles participavam da economia de trocas simbólicas e de materiais impressos, reguladora do mundo acadêmico. Essas dedicatórias não deixam, no interior dessa lógica, de manifestar os sentimentos afetuosos – por vezes, abertamente “fraternais” – dos autores dos livros dedicados, que, muito além das convenções formais, podem estar, de fato, na base das trocas então efetuadas.

Na grande maioria das dedicatórias dirigidas a Ruth e FHC antes de 1994, são manifestos a “amizade”, a “admiração”, o “afeto”, em expressões por vezes hiperbólicas: “com toda a melhor amizade (da admiração nem se fala)”. Nesse mesmo momento, há também algumas dedicatórias que expressam “apreço”, “admiração”, “estima”, vocabulário mais próximo da formalidade acadêmica da troca de elogios. Mas esse tipo de expressão mais formal, nas dedicatórias, acaba muitas vezes sendo concluída também com uma marca de afeto (“abraço afetuoso”), mesclando o registro pessoal ao vocabulário mais formal.

Ainda no interior das convenções do “gênero”, muitas dedicatórias do próprio autor são autorreferenciadas, ou seja, remetem ao livro que se tem nas mãos: “A Ruth e FH, este livrinho que só para em pé quando aberto.” Há, por vezes, nesse tipo de dedicatória – visivelmente mais jocosa, menos séria –, referências que sugerem trocas prévias: “A Fernando e Ruth, pelo estímulo e amizade que o prefácio reafirma, exagerando talvez em atribuir-lhe – ao Fernando – a co-responsabilidade pelas minhas besteiras. Com grande afeto.”10 Este tom das dedicatórias encerra, hoje em dia, o que antes, no regime retórico que regulava os discursos até o século XVIII, era tido por “modéstia afetada”, muito característica dos paratextos introdutórios dos livros. É assim que escreve o historiador Sergio Buarque de Holanda, em 1979, no exemplar de Tentativas de Mitologias, que dedica “a Fernando Henrique”: “mais estas tentativas e o abraço do Sérgio”.

Ainda no mesmo registro jocoso, mesclando epístola e dedicatória – aliás, dois paratextos obrigatoriamente presentes nos livros antigos, sob o regime retórico –, alguns autores interpelam diretamente o destinatário: “Caro Fernando, mais uma vez você verá que não consigo desembaraçar-me do delirante otimismo. Oxalá tenho 10% de razão (já que são tantas as porcentagens neste raio de livro). Abraço cordial.

As dedicatórias são, em grande maioria, convencionalmente dirigidas, na ordem, a “Ruth e Fernando Henrique”. Esta ordem, uma vez invertida, permite também a ironia de Darcy Ribeiro sobre o traço relacional distinto, entre ele e ela: “Para Fernando Henrique e Ruth, com abraços e beijos respectivamente.”12 Em outra dedicatória sua, Darcy Ribeiro indica o protocolo de leitura do livro oferecido, ainda sob o signo da ironia amical: “Para Ruth ler pro Fernando Henrique”.13 A inscrição se lê, de cima para baixo, com “Para Ruth” no topo, e “Fernando Henrique” no final, logo antes da data, “Brasília, Agosto 96”, e da assinatura. Tudo parece se passar no meio, no “ler pro”, fazendo com que cada um dos dois destinatários pudesse assim se prefigurar separadamente o seu próprio modo de receber o livro.

A tópica da “velha amizade” aparece sob vária formas, particularizada muitas vezes na representação de uma “história compartilhada”: “a velha amizade de muitas
lutas”;14 “esta lembrança de Paris”;15 ou ainda: “À Ruth e ao Fernando com as saudades (Brooklin, Londres, Paris)”. Esta última dedicatória, de Bento Prado Júnior, ocupa também a página de modo singular, elencando, de cima para baixo, as cidades rememoradas, degrau por degrau, como se exigisse uma pausa imaginativa entre cada uma delas.

A biblioteca guarda ainda muitos livros com dedicatórias que rememoram a atividade dos Cardoso como professores e orientadores, na universidade. Uma delas,
dirigida a FH em 1994, refere-se à “missão de ensinar”, que se estendia naquele momento à “missão de servir” do novo presidente.17 O percurso foi longo, dizem algumas inscrições, como a que é dirigida ao “mestre e amigo” Fernando Henrique, em memória do “nosso velho seminário do ‘Capital’”.18 Em 1995, numa dedicatória afetuosa de um livro seu, Jorge Caldeira manifesta também a sua gratidão aos Cardoso, amplificada na repetição: “Vocês são os autores do autor.”

Em particular, Ruth Cardoso conta com inúmeras dessas manifestações de agradecimento e, não menos, de afeto acentuado por parte de ex-alunos, tanto em
dedicatórias impressas em teses e dissertações quanto em inscrições manuscritas em livros: “Ruth, minha querida professora, orientadora sempre, amiga, sempre uma referência para a vida. Beijos imensos.”

Das relações acadêmicas dos Cardoso, pelo que dizem as dedicatórias dos livros, uma das mais constantes e duradouras parece ter sido a de Florestan Fernandes, que cuida, inclusive, de enviar livros aos amigos, em 1964, durante seu exílio: “Para Ruth e Fernando Henrique, com votos ardentes para que retornem rapidamente ao Brasil, com a amizade ainda maior de Florestan Fernandes.”

Há poucos exemplares, na biblioteca, de livros oferecidos pelo próprio autor fora do círculo acadêmico. No entanto, neles, a expressão de afeto pode ser semelhante às das “velhas amizades” e “histórias compartilhadas”, em registro igualmente informal. É assim que D. Lucinha oferece o seu livro de culinária, em 2002, ao “Presidente” e à “Dona Ruth”, “com carinho de mãe mineira”.

Nesses livros oferecidos aos Cardoso depois de 1994, uma vez o presidente investido, surgem dedicatórias mais referidas à circunstância, por mais que as expressões
de amizade e de afeto ainda permaneçam. Um exemplo expressivo, nesse sentido, é o livro que traz a dedicatória de Roberto Campos, datada do primeiro ano do mandato do presidente: “Para Fernando, com esperança de uma correspondência ideológica cada vez maior, e com votos de êxito na tarefa de salvação nacional, um abraço afetuoso”.

Em geral, durante “período presidencial”, o tom das dedicatórias, mesmo no interior da oferta “privada” de livros, tende a ser mais formal e protocolar. Nota-se, ainda, uma certa obrigatoriedade, imposta pela força da posição pública dos destinatários, de tocar em questões relacionadas ao Brasil. Muito convenientes, aliás, na relação com os próprios livros dedicados: “Ao Senhor presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, e à Dra. Ruth, esse bocadinho de busca daquilo que não pode ser encontrado: o mistério chamado Brasil. Com admiração.” Ou ainda, com formalidade mais estreita, vocabular e temática: “Ao eminente presidente Fernando Henrique, um pequeno livro sobre Direitos Humanos, fundamento da Democracia. Cordialmente.” Eduardo Suplicy, que oferece o seu livro Renda de cidadania, no aniversário do então presidente, em 2002, disserta longamente na dedicatória sobre o tema de que trata o livro, interpelando diretamente o homem político. As primeiras linhas já dão o tom da mensagem que ocupa toda a folha de rosto: “Ao Presidente Fernando Henrique por seu aniversário. Para que o cartão cidadão não se torne cartão exclusão, será muito importante que seja em breve considerada a sua validade para os 170 milhões de brasileiros […]”.

Há, no entanto, algumas dedicatórias que, mesmo tendo sido formuladas no interior do “círculo político”, não se alinham ao tom protocolar nem às exigências tácitas
de abordagem de grandes temas. É assim que Mário Soares dedica aos Cardoso o livro Entretien, entrevista sua publicada na França em 2002 (e “presenteado em Lisboa”, como ressalva). Na dedicatória, o epíteto que atribui a FHC, “grande Presidente”, não impede a manifestação de afeto subsequente dirigida ao casal: “queridos amigos, admirador de ambos.”

É na dupla representação pública-privada que se realiza a finalidade das dedicatórias mais laudatórias, como a que deseja, desde as suas primeiras linhas, aos
Cardoso, “que Deus, Suprema Onipotência Universal ilumine suas respectivas trajetórias políticas e administrativas em seus mandatos e que tenham muitas glórias e vitórias junto ao povo brasileiro que tudo espera de Vsas Excas.” Ela se encerra com a manifestação, igualmente extrema, de “cordialidade, afeição, carinho e simpatia” do autor, num livro cujo título, A mulher do século. Anatomia, fisiologia e sexologia, não deixa supor qualquer relação possível entre o texto e o louvor.

Em tom mais protocolar, porém não menos laudatório, o livro oferecido em 2008 a FHC por seu homólogo paraguaio, Juan Carlos Wasmosy, Memórias e documentos inéditos, traz a inscrição: “A mi Amigo el Exmo Señor Ex Presidente de la Republica Federativa del Brasil, Dr. Fernando Henrique Cardozo, com mi consideración mas distinguida y particular estima. Cordialmente”. A dedicatória carrega o eufemismo necessário – protocole oblige – à mescla entre o registro “Amigo” e o formal, que define a relação ao destinatário maior, o “Exmo Señor Ex Presidente”.

Em contrapartida, algumas dedicatórias são bastante sumárias, e isso por razões várias, sobretudo de estilo. Mas, muitas vezes, isso pode indicar também que quem
oferece o livro se afasta ou se aproxima, deliberadamente, de um dos polos do binômio público-privado, limitando, num sentido ou no outro, a expressão mais protocolar ou mais íntima. Assim são as dedicatórias de amigos próximos. Celso Lafer se limita, algumas vezes, a dedicar seus livros aos Cardoso apenas “com um abraço”.28 Distanciando-se da imagem pública da “primeira dama” sem deixar de tocar nela, Lourdes Sola endereça a Ruth Cardoso umas poucas palavras adequadamente escolhidas no livro que lhe ofereceu:

“A Ruth, com afeto redobrado e profunda admiração solidária.”29 Ao contrário, aproximando-se da dimensão pública, mais protocolares foram os termos usados por
George Bush: “To President Cardoso, with high regard”;30 ou perfeitamente econômicos, na pena de outro homólogo, Raúl Alfonsin: “Para Fernando Henrique Cardoso, afectuosamente.” Mesmo sumárias, algumas dedicatórias podem mesclar referências formais com rasgos de expressão íntima, subjetivada. É assim que Ana Maria Machado dedica o seu livro O Mar nunca transborda, em 1995, a “D. Ruth”, em sinal de visível respeito, manifestando em seguida “a admiração e a torcida carinhosa”.

Por fim, nenhum dos livros da Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso indicia, de modo mais eloquente, a própria trajetória dos Cardoso do que os de Manuel
Castells. A presença deles é ostensiva, ao longo de muitos anos, e as dedicatórias muito variadas, inclusive nas línguas usadas (espanhol e francês), sinalizando para as várias circunstâncias de uma história vivida em comum. Em todo caso, a sequência dos títulos dos seus livros conservados na biblioteca já diz algo sobre a sua duração: de Capital multinacional, passando por The colapse of Soviet Communism, culminando com The Information Age ou The Rise of Network Society.

As dedicatórias de Castells percorrem os muitos níveis que encerram os seus laços de amizade com os Cardoso. Primeiro, a cumplicidade afetiva, expressa nas saudações “Com todo cariño, vuestro amigo de siempre”; ou, ainda, no grifo, “Con la amistad y la admiración personal, de vuestro Manolo.”32 Segundo, a identidade intelectual, ao dedicar, por exemplo, “este análisis de las raízes del cambio social en uma era que no segue las pautas que nos enseñaron, pero que siempre sentisteis-sentimos”. O uso da dupla conjugação verbal, neste último trecho, aponta para um terceiro nível, o da memória da experiência compartilhada, retratada, em 1981, na expressão “amigos de siempre y compañeros de tantas experiências y de tantos sueños”. Estes dois termos, “experiências” e “sonhos”, se repetem nas dedicatórias de Castells, recobrindo, seguramente, aquilo que liga quem dedica a quem recebe. Assim escreve ele, quinze anos mais tarde, mesclando no texto todos os níveis imagináveis do laço de amizade: “Para Fernando Henrique y Ruth, actores políticos e intelectuales y personas que encarnan en su práctica los sueños y esperanzas de nuestra generación […] Vuestro amigo de siempre, Manolo.”

3. A marca do livro oferecido

Um segundo tipo de dedicatórias leva a assinatura de pessoas que não são os próprios autores dos livros, que apenas os oferecem na qualidade de amigos, colegas,
homólogos etc., em ocasiões tanto privadas quanto públicas (e aqui não se trata dos livros que foram presentes oficiais). São, em geral, desde pessoas próximas até supostamente desconhecidas que presenteiam a “figura pública-privada” do presidente, e eventualmente a “primeira dama”, ou, muitas vezes, o casal.

Para esses livros cujo autor não é quem escreve a dedicatória, o caráter subjetivo, quase como uma marca “coautoral”, se expressa, antes de tudo, na escolha do texto
oferecido e da ocasião da oferta. Os livros de literatura são os que mais se prestam a este tipo de presente, aparentemente mais próximo da representação privada do destinatário, mas quase sempre motivado pela dimensão da representação pública. É assim que um exemplar em inglês de The Brothers Karamazov foi oferecido a FHC, no dia do seu aniversário, endereçado ao “Senhor Presidente”, com a menção “Feliz Aniversário!” e a saudação “Cordialmente”, alternando, com discrição, o tom íntimo e o formal. Já o romance O Matador foi oferecido a Ruth Cardoso, em 1998, com a seguinte dedicatória “cifrada” quanto à motivação da dádiva: “pela impressão que nos causou de nossa periferia.” Ou ainda, num registro mais íntimo: “Para Ruth, esse livro [Trilhos e quintas] que eu adorei. No Natal de 99.”

Ainda no interior da lógica de presentear um texto literário numa ocasião festiva, a escolha sugestiva de Comédias da vida privada, de L. F. Veríssimo,38 é justificada na mensagem transmitida na dedicatória: “Ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, uma lembrança da Segurança Presidencial para amenizar as agruras do cargo. Feliz aniversário!” Pelo visto, nesses livros presenteados, as dedicatórias têm quase sempre a função de passar um tipo de mensagem, muitas vezes coextensiva ao título do livro e ao seu conteúdo suposto. É assim que os Poemas de amor e solidariedade, de A. Zanotto, oferecidos como presente aos Cardoso, trazem, na dedicatória, a referência ao “brilhante trabalho” realizado por eles, como “inequívoca demonstração de amor e solidariedade”.

As dedicatórias desses livros funcionam, também, como um guia de como e por que ler, um verdadeiro protocolo de leitura para aqueles que são presenteados. Em 1995, o então presidente recebe o livro de Gore Vidal, Hollywood, um romance da América nos anos vinte, com a inscrição: “Para Fernando Henrique – Presidente e amigo – um belo romance para seus raros instantes de lazer”.40 Mais um livro da biblioteca tem sua chave de leitura expressa na dedicatória. Trata-se de A arte da sabedoria mundana. Um oráculo de bolso, texto do século XVII, traduzido, adaptado, e assim mutilado em edições brasileiras contemporâneas, que transformaram as máximas da “arte de prudência” do jesuíta Baltasar Gracián em conselhos de autoajuda. Os termos escolhidos na dedicatória buscam conformar, de antemão, a recepção do destinatário, ressalvando o “interesse” do texto e descartando uma suposta “necessidade” de aconselhamento: “Para o Presidente Fernando Henrique Cardoso: os aforismas são desnecessários, talvez; mas a compilação é interessante.”

Outro aspecto importante diz respeito à ocupação da página pela dedicatória manuscrita. Uma delas, em especial, chama a atenção, estendendo-se por três páginas,
desde a de rosto. O autor ultrapassa as convenções do “gênero”, redigindo mais uma vez uma carta, que contém, inclusive, como nas epístolas antigas, uma petitio, um pedido dirigido ao então presidente. A ocupação um tanto anárquica das páginas (começando da esquerda para a direita), a cor da tinta, azulada, a variação da caligrafia e, não menos, o teor das palavras eleitas fazem deste um exemplo bastante singular. A extensão e o conteúdo da intervenção manuscrita e a escolha do texto oferecido dizem muito quanto às expectativas da recepção do livro dedicado. Trata-se de Les portes du Ciel, de Jacques Attali, livro que serve de espaço – físico e simbólico – para o longo discurso da dedicatória, que vale reproduzir na íntegra:

Sr. Presidente, Dedico-lhe este livro, como alguém que lhe admira desde o dia em que vi no “EUCHANEL” a Sua Excelência declarar: “… o Brasil vai cumprir os seu compromissos internacionais custe o que custar…”. Depois disso me mudei para o Brasil, orgulhoso do nosso chefe da nação. Mais orgulhoso fiquei em ve-lo numa foto com “os cinco grandes” na Alemanha. Como economista, admiro a habilidade com que o Sr. Tem tratado as questões políticas e econômicas. É uma pena que o Sr. Não conte mais com o “TEO” (TEOTONIO) para lhe auxiliar nas negociações políticas. Como bom alagoano e amigo de infância dele, que conheço bem, posso lhe garantir que é um homem de bem e daria um ótimo PRESIDENTE. ELE TEM UMA LIDERANÇA NATURAL E EXPONTÂNEA. DESDE O TEMPO DE FACULDADE PARA ONDE ELE IA CARREGAVA TODOS OS AMIGOS COM ELE. OS AMIGOS NEM PERGUNTAVAM PARA ONDE ELE IA, SIMPLESMENTE SEGUIAM-NO. PARA ONDE ELE IA, O POVO IA ATRÁZ, SEM PERGUNTAR NADA. NA MINHA OPINIÃO, NA POLÍTICA, ELE SUPEROU O PAI, E MUITO. MAS, NA SUA HUMILDADE, SEU PAI É O SEU GRANDE ÍDOLO. DESCULPE POR ME ALONGAR TANTO. SEI QUE O SR. COM CERTEZA FARÁ O SEU SUCESSOR. PENSE NO TEO, SR. PRESIDENTE, COMO UMA SOLUÇÃO E SE FOR O CASO CONVIDE-O. COM RESPEITO E ADMIRAÇÃSO DESDE QUANDO LI “SOCIEDADE BRASILEIRA”, EM 1973. […] P.S. ESPERO QUE A LEITURA DESSA PEÇA LHE SEJA PROVEITOSA.

A conveniência da escolha do livro, sugerida no Post Scriptum, fornece o peso histórico necessário para legitimar os termos da dedicatória: a peça tem por personagem principal o imperador Carlos V, em 1558, poucos anos depois de sua abdicação, quando busca dar conta do seu legado, nas cerimônias organizadas em sua memória, em vista de seu próprio funeral. A chave interpretativa da leitura – “proveitosa” – de quem tem o livro dedicado é, assim, expressamente comandada pela intenção da mensagem daquele que o dedica.

Um último conjunto de dedicatórias diz respeito, muito particularmente, à relação do casal Cardoso: alguns exemplares da biblioteca foram oferecidos por Ruth a Fernando Henrique. Essas dedicatórias são muito simples, como se não fosse preciso escrever nada, apenas deixar lavrados os dois nomes, e com isso apenas dar sentido ao gesto e ativar a memória da ocasião, exclusivamente entre um e o outro. Em 1949, Ruth ofereceu a Fernando Henrique, no seu aniversário, um exemplar de Calligrammes, de Guillaume Apollinaire. No ano seguinte, Le livre ouvert, de Paul Éluard, e um volume em espanhol de Marx, El Capital. Em todos, a mesma inscrição singela: “Para o Fernando Henrique, da Ruth.

Mais um livro, Les Caves du Vatican, de André Gide, oferecido por ela em 1951, comemora um evento aparentemente importante, à época: “Ao Fernando Henrique, no seu segundo dia de árduo trabalho. Ruth.” Talvez eles já imaginassem que esses eram apenas os primeiros de muitos dias de árduo trabalho – dignos de comemoração – que estariam por vir

Dentro e fora da biblioteca

A intenção deste ensaio não foi, pelo visto, fazer um esboço analítico da Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso. Foi, tão simplesmente, a de abrir as portas do espaço que abriga os livros e pensá-los de pontos de vista possíveis. Essa visada talvez tenha trazido à tona muito daquilo que, potencialmente, permite compreender os sentidos que a atravessam por dentro e que a relacionam com o que esteve e ainda está fora dela.

Desse modo, ela foi tomada aqui como um conjunto material e simbólico passível de uma operação arqueológica sobre a própria materialidade dos livros e a partir de
indícios de práticas e representações relacionadas àqueles que lhe dão muito mais do que os nomes. Quando manuseados, esses livros podem ter força semelhante a de alguns relatos biográficos ou autobiográficos, ou mesmo de fotografias, produzindo um “efeito de presença”, de muitas presenças.

Se algumas das proposições deste ensaio têm aparência previsível é porque uma biblioteca como essa guarda, por excelência, um sentido de que seus usuários de hoje, imprevistos, certamente suspeitam: o da trivialidade da vida privada frente à oficialidade da vida pública. Como foi sugerido, esta é a tensão, maior ou menor, que se encontra em cada um dos livros. E o que a letra morta dos impressos, em seu silêncio monumental, pode dizer da história vivida daqueles que os manipularam, os marcaram, ou, mais ainda, deram seus nomes como seus “proprietários” e foram seus primeiros leitores? As portas da biblioteca assim abertas nos deixam entrever que a simples presença desses livros reunidos já é, em si, uma resposta.

 

Ficha técnica

Concepção:

Grifo Projetos e Fundação FHC

Curadoria e desenvolvimento:

Camilla Campoi, Jéssica Almeida e Silvana Goulart – Grifo Projetos

Textos:

Silvana Goulart

Identidade visual:

Sintrópika

Tratamento de imagens:

Camilla Campoi e Jéssica Almeida – Grifo Projetos

Agradecimentos:

Alexandre de Almeida, Ana Maria Clark Peres, Beatriz Santos, Danielle Ardaillon, Dmitry Bayakhchev, Laura Mollo, Mateus Petratti, Pedro Carvalho, Rodolfo Quina, Thais Gurgel e Sergio Fausto.